quarta-feira, 25 de julho de 2012

O sol, a mulher, o tiro


O sol, que há pouco fugira, apareceu nesse dia de inverno. E cá estava eu, em mais uma espera por transportes coletivos na cidade...

Enquanto eu me preocupara com os papéis em cima da mesa, os e-mails, as entrevistas e meus horários, a mulher que estava ao meu lado, também com a testa franzida, se preocupava com seu bairro, sua casa e o horário. Éramos duas estranhas inquietas com a demora do ônibus, que por sinal era o mesmo que iríamos pegar. Cá trazia a vida mais desconhecidos para minhas histórias...

O relógio, que batia catorze horas quando nos encontramos, ganhara muito rapidamente trinta minutos. 

Enquanto eu me apressara para olhar a hora e olhar o horizonte em busca do ônibus, a mulher se mexia de um lado para o outro. Nada muito exagerado, nada que qualquer pressa deixasse percebê-la. Mas nossas inquietações nos aproximaram quando ela disse que o ônibus não chegava. E com as circunstâncias, eu não pude discordar. Os minutos se passavam, mas nunca nossas inquietações...

Com mais alguns passos de um lado para o outro, ela voltou a dizer sobre a demora do ônibus. E com toda a pressa que eu estava, continuei o assunto sobre esses atrasos, sobre a quantidade dos carros, enfim, sobre essas coisas que as pessoas conversam em filas - mas não estávamos em uma. Era uma conversa fora de moda, que todo mundo odeia, mas sempre troca algumas palavras sobre.

Apreensiva ela contou o motivo de toda sua pressa: 

- Preciso ir para casa, meu marido já me ligou e disse que o tiroteio começou cedo.

Calei imediatamente meus pensamentos pequeno-burgueses... E perguntei:

- Não é perigoso ir agora, então? 
Obviamente ela respondeu que sim.
- É perigoso mas acabou de começar. Meu marido ligou e disse para que eu saísse do trabalho no mesmo instante.
Continuou ela:
- Se eu não for agora, eles podem fechar a rua e eu não consigo entrar em casa.

Nos calamos até que eu voltasse a perguntar.

- É todo dia assim?
- Toda semana. Mas ontem à noite também teve. 
Continuou ela:
- Mas eu não moro na favela. Se eu morasse já tinha saído de lá.
- É perto?
- Mais ou menos. Tem uma favela de um lado e outra de outro e eu moro perto das duas. Mas não moro nelas.
- Eles fecham, então, a principal rua que dá na sua casa, né?
- E aí eu não consigo entrar... Mas se eu morasse na favela, eu já tinha saído de lá...

Lembrando sempre que ela não mora em "comunidade", ela disse ainda sobre o incômodo dos barulhos: tiros, helicópteros, gritos, tiros, gritos, helicópteros...

- Quando tem helicóptero, passa em cima de casa e eu não consigo ficar sossegada. É um barulho muito alto, que fica um tempão...
- Mas mesmo com você que não mora na favela, eles mexem?
- Não, ninguém mexe com ninguém. Mas quando tem essas coisas, eles fecham o comércio.
- Então você nunca nem viu?
- Não, eu nunca vi. Mas uma vez meu marido estava de um lado e os bandidos do outro atirando. Meu marido viu tudo e um dos tiros chegou a atravessar a janela de um ônibus que passava na rua.
Continuou ela:
- Quando tem confusão sobra para qualquer um...
- Se eu morasse na favela... Mas até que essa é pacificada...

Chegou o ônibus... E não tinha lugar para sentarmos juntas. Despedi-me, então, silenciosamente e desejei "boa sorte" à essa mulher - mais uma de outra realidade, pra gente, distante.

Bianca Garcia

6 comentários:

  1. Eu vivi de muito perto essa realidade, e algumas vezes tive que sair do trabalho às pressas porque "tinham mandado fechar". Essas coisas que se juntam a muitas outras na minha lista do que eu não sinto falta da capital.

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    1. E, Sandro, com a tranquilidade que vocês vivem aí não dá mesmo para sentir falta deste lado, não há preço que pague. Um dia - espero que não esteja distante - eu volto para o interior...

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  2. Olá, Bianca, como vai?

    Alegra-me saber que tua sensibilidade e tua humanidade continuam à flor da pele; que bom que a cidade grande não te endureceu...
    Permita-me buscar um ponto em comum - prometo que é apenas um, tá? - entre vossos dois artigos com títulos trinos.
    Qual ponto em comum? Bem, elejo a "invisibilidade escancarada"... termo contraditório? Sim, assim como a vida, minha cara...
    Falas do Rio... porém, em uma pequena cidade aqui do norte pioneiro, enxerguei quase tudo o que você escreveu... sim, isto mesmo, quase tudo (só faltaram os tiros)!!!
    E vi quase tudo em uma só cena: um sujeito, embriagado, caído na sarjeta. Os transeuntes passavam por cima dele como se ele não existisse.
    Naquela cena comum, havia a pobreza (em especial, a de espírito), a tristeza (turbinada pela indiferença) e a beleza (frágil e feia) de todos os "bons cristãos" diante do "execrável pecador".
    E havia também, Bianca, o Sol, iluminando a todos, indistintamente.
    Não, não ouvi tiros... ali, naquele momento interminável, a morte exibia-se de forma lenta e silenciosa...

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    1. Antonio,

      Alegra-me saber que você ainda visita o blog.
      Quanto a minha sensibilidade e humanidade... Bem, elas não serão endurecidas pelas buzinas, pelas grosserias e pelo caos urbano. Isto é apenas um grande incômodo, mas jamais deixaria de ver o outro, que se destaca neste meio conturbado, pela correria rotineira. Afinal, já era para ter me acostumado com a "cidade grande", mas me sinto um peixe fora d'água desde que a conheci (há muito e muito e muito tempo).
      À morte lenta e silenciosa no norte pioneiro já foi vista por mim no sudeste mineiro. Por tantas idas para essa cidade pequena, posso dizer que não são raros os sujeitos embriagados caídos nas sarjetas. No final das contas, olhos que não querem enxergar o outro não estão apenas na cidade grande ou pequena, essa está sendo uma característica cada vez mais forte do ser, egoísta, humano.

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  3. Oi,Bianca!

    Bem ,eu sou uma pessoa apegada as palavras e como não poderia deixar de ser, também tenho meu tempo verbal favorito. Sim , sou fã do pretérito mais-que-perfeito e sempre que vejo alguém usando fico muito feliz!Não sei o porquê, mas acho que confere ele um ar brejeiro ao texto.
    Quanto ao texto, o que realmente assusta é que esta conversa pode ocorrer de forma corriqueira seja no Rio ou em qualquer cidade do nosso país.E o pior, os tiros, os gritos,as drogas...todas estas mazelas se tornam inerentes à nossa cultura , como se fizessem parte da nossa fotografia social.
    Que bom ler textos como este,pois a leitura desperta. E como diria o personagem Brás Cubas, ventilai as consciências!
    Abraços,
    Islayne

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    1. Islayne, então somos duas apaixonadas por esse tempo verbal. Talvez a explicação esteja no fato dele ser pouco utilizado. Não acha?

      De tudo, fico especialmente com isto: "todas estas mazelas se tornam inerentes à nossa cultura , como se fizessem parte da nossa fotografia social".

      Obrigada por trazer comentários que sempre acrescentam :)
      Bjs,

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